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Sono. Muito sono.
Tanto que mal consigo mover os meus braços e minhas mãos. Digito freneticamente e sem saber ao certo o que estou a escrever. Os meus olhos fecham-se lentamente, não há como lutar contra o peso descomunal das minhas pálpebras. Elas parecem pesar toneladas, medir metros e metros de pele que encobrem sem dó os meus olhos atabalhoados. O sono deixa-me vendido, despido, fraco. As pernas tremem com os espasmos de relaxamento dos músculos. Estou quase a entregar-me.
Na minha frente ainda está o copo, aproximadamente dois dedos de Coca-Cola com martini ocupam o seu fundo. No bocal, um tom estranho de vermelho mancha o vidro, aquele vermelho que antes habitava uma boca e um sonho, uma fantasia e um corpo, uma mulher e eu. Nunca, nem no meu mais desvairado pós-morte, vou esquecer aquele tom de vermelho, ao mesmo tempo agressivo e passivo, quente e frio, vivo e morto. Na minha cabeça aquela marca de batom emoldurava o meu leito de morte, e eu olhava o reflexo da minha patética figura no copo a ficar cada vez mais pálido.
Continuei a digitar, cada vez mais e mais e mais, apressado com a força que me faltava. "Uma pena que provavelmente não terei tempo de a revisar", pensei entre uma frase e outra, acometido pelo vício do perfeccionismo enquanto lia sem ver as palavras aleijadas por dedos imprecisos. Típico pensamento de quem passou a vida a tentar fazer tudo certo, para chegar agora ao ponto de morrer pela mulher errada.
Entre uma frase e outra que escrevia ela entrou novamente na sala, e eu nem a vi. Agora, passando as mãos pelo meu cabelo, ela balbucia alguma coisa que não consigo precisar, mas vejo que é entremeada de risadinhas sacanas. Não percebi que ela estava a ler o que eu escrevia, e apanhara a minha carta de despedida. Ela comenta, entre uma e outra risada, que se espantou quando eu percebi pelo gosto da bebida que alguma coisa não estava certa. E ri, a desgraçada, e ri de mim e de tudo o que eu já senti por ela.
Quando ela tenta recuperar o ar de mais uma gargalhada gozosa, sinto seus dedos enfraquecerem devagar no entrelaçar dos meus cabelos. Uma tosse, um engasgo, e vejo que ela agora lê mais uma frase, esta que acabei de escrever com palavras retalhadas de erros de digitação contando que eu havia descoberto seu plano para me envenenar e que eu a tinha envenenado também. Mesmo sabendo do seu intuito, não deixei de beber a minha bebida baptizada, pelo simples facto de não querer lidar com a realidade de saber que a mulher que eu mais amava me tentou matar.
As suas mãos caem sobre os meus ombros, o meu coração acelera os batimentos e os meus dedos já não me obedecem. Antes que meus olhos se fechem por completo ainda consigo ver sua sombra, projectada na parede à minha frente, a desabar silenciosamente ao chão. Ouço apenas o ruído de um peso a cair sobre a carpete, seco, morto. Já não tenho mais o que fazer aqui. Desisto de resistir, cedo ao peso das pálpebras e deixo-me levar.
Até logo, meu amor.
Vejo-te no inferno.
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autor:bruno.reis
Há 1 semana
14 comentários:
As fotos estão espectaculares!!Também gostei do texto!!
Tens lá a resposta à tua pergunta!!
Girl in the Clouds,
Obrigado já vi.
:)
gostei de tudo :)
e de facto ...está lá tudo
bj
teresa
não sei se vai continuar tudo como era lá no inferno!
ouvi dizer que há por lá muitas brasas...
Ir para o inferno "por tão pouco"???
Nem penses nisso.
Tinha uma amiga que dizia: "Quero ser uma má menina, porque as boas vão para o céu, as más vão para onde quiserem", não acredito em pessoas sem qualquer mácula... Todos temos o positivo e o negativo, alguns pendem mais para um... E para ser franca o Inferno deve ser muito mais animado!!!
Beijos
P.S. Boas entradas!!!
Que 2010 traga tudo de bom...
Beijos
Ainda bem que reeditaste esste texto! Sem dúvida, muito bom!
Votos de boas entradas para o novo ano para ti e para a familia.
Um beijo grande
continuando assim...,
Ainda bem Teresa
:)
Vício,
pois..., mas como vão os dois para lá... mantém-se o equilibrio.
:)
pinguim,
vão para o céu queres ver...
deve ser uma monotonia,
:)
Candybabe,
ora, tu e a tua amiga devem ter mesmo razão!
:)
najla,
sabes que há um ano tinha 1/3 dos visitantes que tenho hoje.
sei que é impossível andarem a fazer arqueologia pelo Lontrices e sendo assim, aos poucos, vou dando entrada de algumas das que no início gostei mais.
este é mesmo interessante e divertido.
tu és do início, fiel e amiga.
:)
:)
O que eu perdi!
Fotos lindas, como sempre...no teu blog.
E o texto, hummmm...!
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